Talvez se trouxéssemos Oswald de Andrade para o século XXI, sob a lente afiada de Hélio Oiticica e da geração tropicalista, o conceito de Antropofagia se tornaria ainda mais subversivo. Não estaríamos mais apenas "comendo" a cultura estrangeira e transformando-a em algo nosso; estaríamos deglutindo o mundo inteiro — arte, política, comportamento — em uma explosão de contracultura. Oiticica, sempre visionário, já via isso como uma revolução universal. Ele não estava interessado apenas em estética, mas em uma crítica profunda que derruba fronteiras entre arte e vida, conhecimento e experiência. Sua obra atravessa esses limites, tornando-se uma arena de batalha cultural.
O Neoconcretismo, movimento que envolveu artistas como Lygia Clark e Ferreira Gullar, colocou o espectador no centro da experiência artística, tornando-o cocriador da obra. Oiticica pegou essa proposta e a radicalizou. Ele não queria apenas interação; queria engajamento sensorial, físico e social. O Parangolé (1964) não era uma obra para ser vista, mas para ser vestida, dançada, vivida. A roupa, o corpo e o ritmo se fundiam numa única experiência. Ele dizia: “me veio a necessidade de uma livre expressão, já que me via ameaçado por uma excessiva intelectualização”. O corpo, antes objeto, agora era sujeito. O espectador se transformava em performer. A arte não estava mais no museu; estava na favela, na rua, no morro, no samba.
Essa aproximação ao popular, na década de 1960, incorporando a favela e até mesmo a figura do bandido à obra, revela uma fluidez cultural rara e desafiadora. Oiticica não estava apenas celebrando a cultura suburbana, estava rompendo com as distinções entre "alta" e "baixa" cultura, infiltrando o que as instituições de arte consideravam legítimo com o pulsar das ruas. A sua arte media mundos que pareciam irreconciliáveis. Esse movimento, que absorvia samba, carnaval e favela, desafiava o olhar colonizador que insistia em enquadrar a cultura brasileira dentro de estereótipos exóticos ou hierárquicos. Ele mostrou que a arte brasileira poderia ser vanguarda ao mesmo tempo em que abraçava suas raízes mais populares.
Quando Oiticica falava de Concretismo e Neoconcretismo, ele não os via como movimentos restritos ao Brasil, muito menos presos ao tempo e espaço, como o Cubismo ou o Futurismo. Ele via neles uma postura crítica universal, algo que derrubava fronteiras entre arte e política. Era uma resposta visceral não apenas à ditadura militar, mas também ao colonialismo cultural imposto pelo Ocidente no contexto da Guerra Fria.
Para Oiticica, a arte não podia mais ser confinada aos limites da estética pura, como algo belo e isolado do mundo real. A estética, em sua visão, era inseparável do comportamento humano e da experiência vivida – uma ferramenta poderosa para subverter as normas sociais, questionar as estruturas de poder e desafiar a ordem estabelecida. Cada obra era um ato de resistência, uma tentativa de desestruturar as convenções impostas pelo capitalismo e pelo imperialismo, que buscavam homogeneizar a cultura e silenciar as vozes marginalizadas. A arte de Oiticica transcende o visual; ela é uma insurgência corporal e sensorial que convida o espectador a repensar seu papel na sociedade, a quebrar as barreiras entre o eu e o outro, entre o espaço público e privado, e entre a cultura de elite e a cultura popular. Em um mundo onde o consumo massificado moldava as relações humanas, sua obra propunha a libertação do corpo, a reapropriação do espaço e a recriação do sentido de comunidade, devolvendo ao sujeito a possibilidade de experiência genuína e emancipadora.
E então vem o Tropicalismo. A Tropicália, junto com figuras como Caetano Veloso e Gilberto Gil, foi o ápice dessa rebeldia. Não era apenas música ou arte, mas uma reconfiguração completa da cultura brasileira, uma contestação crítica e radical do status quo. Oiticica nem gostava de chamar isso de “movimento”. Para ele, era uma síntese de tudo o que a arte brasileira vinha buscando desde o final dos anos 1950: romper com o tradicional, experimentar o novo, questionar o instituído. O Tropicalismo foi a fusão perfeita entre arte, música, teatro e cinema, um mosaico que refletia a multiplicidade da identidade brasileira — uma identidade fragmentada, mas vibrante, caótica, mas unificadora.
A Tropicália era uma contra-narrativa à modernidade arquitetônica, um lembrete de que antes de nos isolarmos em estruturas de vidro e concreto, existia o solo, o corpo, o toque. Para Oiticica, a arte era a oportunidade de reconectar o sujeito com o espaço, de sentir novamente a terra sob os pés em um mundo que parecia cada vez mais desencarnado pela tecnologia. Suas manifestações eram sensoriais, táteis, sonoras; uma espacialidade tropical que desafiava a frieza modernista.
Conectando o Eu com o Espaço em Tempos Digitais
Agora, em um mundo dominado pelo excesso de tecnologia, a obra de Oiticica nos oferece um alívio poético. Em uma era onde as conexões digitais nos desconectam de nosso próprio corpo, sua arte propõe um reencontro — com nós mesmos e com o espaço que habitamos. Suas obras, como o Parangolé, nos desafiam a sair de trás das telas e nos movimentar pelo mundo real, a sentir o vento, a dançar. Ele nos força a refletir: como podemos, em um tempo tão imerso na virtualidade, retomar o sentido de presença? Onde está o nosso corpo, e como ele habita o espaço?
Essa reflexão nos leva a outro ponto crucial: a multiplicidade da identidade brasileira. Oiticica compreendeu que a identidade não é fixa, mas móvel, fluida, como a própria cultura brasileira — uma fusão de influências africanas, indígenas, europeias, que resistem, se misturam e criam algo novo. No século XXI, nossa identidade continua a se multiplicar, influenciada não apenas pela geografia, mas pelas culturas digitais que atravessam o globo. O desafio é mantermos o contato com a terra, com o corpo, com o espaço, enquanto navegamos por essas novas formas de ser.
Oiticica, com sua arte visceral e rebelde, nos lembra que a verdadeira revolução está em manter o sentido do corpo, do espaço e da coletividade, mesmo em tempos de intensa conexão digital. Em última análise, sua obra é um chamado para reavaliarmos o que significa ser humano em um mundo cada vez mais mediado pela tecnologia, para nunca nos esquecermos da fisicalidade e materialidade que nos define. O elo entre o eu e a natureza.
Fotos tiradas na exposição do Oiticica no CCBB de Brasília, em 2023 :)